Critique o “identitarismo” sem ser descomedido

Jacira Pontinta Vaz Monteiro
6 min readJan 17, 2022

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eita imagem feia da peste

Sábado passado, 15/01, foi o dia de comemoração de aniversário do reverendo Martin Luther King (MLK). Nascido em 1929, este ano o MLK estaria completando 93 anos não fosse o fato de que foi assassinado em 4 de abril de 1968. O reverendo King foi gigante na luta contra o racismo, contra a pobreza e desigualdades e contra as guerras.

Martin Luther King disse que tinha um sonho, o sonho de que houvesse igualdade racial nos Estados Unidos — e em todo o mundo. Bem, ainda no dia de comemoração do aniversário do MLK, onde reflexões sobre a subalternidade do negro estavam sendo feitas, às 23:18, o Jornal Folha de São Paulo postou um texto em sua plataforma digital sob a titulação “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.

Quem acompanha o debate racial sabe que não se é aceito, pelos teóricos de raça e etnia, academicamente, a visão de “racismo reverso” (o argumento é que o racismo é tanto individual quanto sistêmico. Brancos não sofrem injustiça sistêmica como os pretos). Logo, o título da matéria da Folha seria, no mínimo, tendencioso.

Li o artigo e fiz um comentário no post da Folha, no Twitter. Eu disse:

Primeiro, não é muito gentil chamar as palavras de alguém de “babaquice”. Mas eu não tive intenção nenhuma de ser gentil mesmo, neste meu comentário a respeito do texto. Agora, babaca, segundo o dicionário, significa “algo não interessante; sem conteúdo”. Acredito que o texto realmente não é interessante. E também confuso em essência — inclusive alguns defensores do artigo também não conseguiram entender a sequência lógica do que estava sendo dito ali. Em resumo, é um baita de um artigo ruim e caótico — nesses termos.

Segundo, eu disse que o texto é indiretamente racista. O que eu quis dizer com isso? Bem é extremamente comum que os negros ao exporem suas dores, serem descredibilizados. Um termo muito utilizado, direcionado às minorias, como um todo, é o “mi-mi-mi”. Em sendo assim, toda informação infundada que é disseminada e que tem em sua essência a suavização das dores diárias que os negros sofrem é também expressão do racismo. Isso porquê, seria uma forma também de desumanizar os negros, já que se coloca em “xeque” as injustiças sofridas pelo povo negro, desembocando em letargia na observação das necessidades de mobilização individual e de políticas públicas antirracismo.

Mas o que torna o texto do Antonio Risério tão ruim? Bom, entendo que a crítica principal dele não está de um todo equivocada. Risério critica o identitarismo da militância negra. Ora, fazer críticas ao identitarismo não tem problema. Em meio livro “O Estigma da Cor”, no capítulo 6 “Raiva e Ressentimento” faço críticas ao identitarismo. Como uma martinlutherkingiana, acredito que a luta antirracismo e anti-injustiças devem ser feitas com o reafirmar de virtudes e sem o ódio e o ressentimento. O que torna o texto ruim são os exemplos desconexos à realidade atual brasileira o que acarretou em uma conclusão desproporcional e descomedida. Vejamos…

O primeiro exemplo do Antonio é de “série de ataques racistas de pretos contra brancos no metrô de Washington”, nas palavras do autor. Nessa ocasião, segundo Risério, um grupo de adolescentes negros gritava “Vamos matar todos os brancos!”. Note que a situação aconteceu nos Estados Unidos.

O segundo exemplo foi o caso de ataques a idosos brancos no Brooklyn. Fato também foi ocorrido nos EUA.

O terceiro exemplo foi que “três adolescentes brancos foram atacados por uma gangue de jovens pretos no Michigan.”. Novamente, fora do Brasil.

Nos exemplos seguintes, o autor cita uma série de exemplos de racismo preto antijudaico. Todos os exemplos ocorridos fora do território brasileiro.

Posteriormente, o autor explora o racismo negro antiasiático. Ocorrências que aconteceram também fora do Brasil.

O autor fala da ‘Nação do Islã’, grupo supremacista americano. Advinha onde esse grupo atua? Pois é, não é no Brasil.

O autor cita uma única vez um exemplo no Brasil. De uma ocorrência da década de 1930, em que a Frente Negra Brasileira fez elogio aberto ao Hitler. Agora, perceba que no único exemplo brasileiro foi um elogio aberto ao Hitler. Perceba que não há uma violência direta para com os brancos — como houve nos outros exemplos. Na verdade, o autor cita esse exemplo para mostrar um caso, de toda a trajetória do movimento negro brasileiro, em que os líderes do movimento fizeram um racismo antijudeu. Note, que o autor não apresenta um exemplo concreto de racismo antibranco, feito pelos movimentos antirracismos do Brasil, na realidade brasileira.

Depois de toda essa bagunça feita, e de umas imagens descontextualizadas colocadas ao artigo, o autor conclui: “Engana-se, mesmo com relação ao Brasil, quem não quer ver racismo, separatismo e mesmo projeto supremacista em movimentos negros. O retorno à loucura supremacista aparece, agora, como discurso de esquerda.”. O autor está dizendo que após dar uma série de exemplos de identitarismo de grupos negros americanos (um país onde houve separatismo {realidade que ocorreu no Brasil}, onde há bairro de brancos e bairro de negros, onde há grupos supremacistas como Ku Klux Klan — que incendeia e comete atrocidades aos bairros de negros, um país onde igrejas de negros são incendiados, um país onde há George Floyd’s), que a os discursos de esquerda brasileira levam à um ideal supremacista negro.

Aliás, o autor começa o seu artigo dizendo que “Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo.”. O que o autor esquece é de explicar como se dá esse poder institucionalizado dos negros, já que as posições de liderança do país (falo do Brasil) são majoritariamente brancas. O que o autor não explicou é como que em mais de 400 anos de escravidão negra, que privou o povo peto à educação e ao acesso ao trabalho digno, e o pouco mais de 100 anos de abolição os pretos já detém do poder institucionalizado? Não se pode dizer algo sem base. Precisamos saber como, onde e quando ocorreram tais fatos. Quais são os dados?

Sim, é verdade que existe preconceito racial de negros contra brancos. Certamente existe. Martin Luther King, em seu livro “Por que não podemos esperar” diz que “Ninguém pode fingir que, porque um povo é oprimido, cada indivíduo é virtuoso e digno. A questão real é se as características dominantes na grande massa são decência, honra e coragem”. Como King ainda diz, “Os negros são humanos, não super-humanos”. E sendo humanos, os negros são pecadores. E sendo o preconceito racial também pecado, os negros podem sim ter ódio de cor.

Identitarismo como fim em si mesmo também é problemático, pois pode levar à uma forma binária, racialmente falando, de se enxergar o mundo. Isso limita a capacidade de observação dos fatos, em muitos momentos. A identidade tem o seu valor, e a diversidade criacional de Deus deve ser valorizada. Agora, se o identitarismo for a chave hermenêutica para se ver o mundo, pode-se sim cair numa guerra “nós contra eles”, o que não ajuda nas virtudes cardeais necessárias aos relacionamentos, culminando em não ajudar na promoção do bem comum.

Concluindo,

1. Não existe o “racismo reverso”, pois o racismo é tanto individual, quanto institucional

2. Os exemplos de ódio a brancos que o Antonio dá são todos de realidade fora do Brasil. Os exemplos levam a uma descrença e uma desconfiança em todos os movimentos negros antirracismo, já que o autor os põe como supremacistas.

3. O texto é racista à medida que diminui ou compara o sofrimento e subalternização dos negros aos pontuais exemplos que o autor dá de “racismo” dos negros aos brancos

4. Identitarismo tem seus problemas. Mas tem como criticar o identitarismo sem fazer um texto babaca.

5. Hoje é o Martin Luther King Day, Dia de lembrança ao legado do Martin Luther King. Não acredito que estou fazendo um texto para explicar que o racismo reverso não existe em um dia como esse.

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Jacira Pontinta Vaz Monteiro

Autora de O Estigma da Cor. Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie). Pós-graduanda em Teologia Bíblica e Exegética do NT (FICV).